Fundo de poço

A morte de Jesus Cristo é a demonstração da mente de Deus na história humana. Não há como olhar para Jesus como um mártir, pois sua morte não foi algo que aconteceu com ele e que poderia ter sido evitada. Sua morte foi a razão declarada de sua vinda.

Não devemos ensinar o perdão de Deus no fato de que Ele é nosso Pai e nos perdoará porque nos ama. Isso contradiz a revelação de Deus em Jesus Cristo, torna a cruz desnecessária e a Redenção "muito barulho por nada." Se podemos experimentar a recuperação é por causa da morte de Cristo. Deus não pode perdoar os homens de nenhuma outra maneira a não ser pela morte de Seu Filho e é por isso que ele é exaltado como Salvador. A maior nota de triunfo que já soou nos ouvidos de um universo perplexo foi a que soou na Cruz de Cristo: "está consumado". Essa é a última palavra na Redenção do Homem.

Qualquer coisa que deprecie a santidade de Deus por uma falsa visão do amor de Deus é uma inverdade quanto à revelação de Deus dada por Jesus Cristo. Nunca permita o pensamento de que Jesus Cristo permaneça conosco contra Deus por piedade e compaixão; que Ele se tornou uma maldição por nós por simpatia a nós. Jesus Cristo tornou-se maldição por nós por decreto divino. Nossa participação no processo de nossa redenção – ou recuperação – é termos a consciência de nossa maldição pela convicção de pecado, a qual podemos chamar de experiência de fundo de poço. Em nossa conversão, recebemos o dom da percepção da culpa e da vergonha, dons do Espírito que nos conduzem à escolha da dependência de Deus e da renúncia à dependência de nossa própria força, pois a verdade é que não a temos. Jesus Cristo odeia o erro no Homem – a idéia de que sozinho pode dar conta de sua miséria – e resolve o erro humano no Calvário.

O despertar espiritual resultante da experiência do fundo do poço produz grande incoerência, uma grande quantidade de emoções conflitantes a respeito de si mesmo, dificuldades de se adaptar à realidade do dia a dia. A sobriedade, caracterizada por uma grande coerência tanto interna quanto externamente, ainda não se desenvolveu. O início da recuperação é marcado apenas por uma abstinência duramente conseguida. Somente quando a sobriedade surgir como resultado de longo processo de abstinência é que poderemos mudar externamente sem que isso nos cause ansiedade e angústia. Até então, estivemos nos esforçando para mudar externamente. A nossa sobriedade tem que alcançar nossos alicerces emocionais e espirituais para que possamos nos sentir seguros. E a sobriedade e conseqüente segurança são baseadas na agonia de Deus na Redenção do mundo através da Cruz de Jesus Cristo.

Através da oração e meditação buscamos a reafirmação de nossa fé em verdades reveladas e experimentadas na própria recuperação, e nós aprendemos a aceitar realidades que não mudamos, a tornar iniciativas que nos são possíveis e a distinguir umas das outras. E a cada instante, voltamos à base de toda recuperação: a Graça de Deus suficiente para nos garantir viver em sobriedade um dia de cada vez: Paulo recomenda a Timóteo que "... seja forte por meio da graça que é nossa por estarmos unidos com Cristo Jesus" (2.a Tm 2:1).

Nosso ensino não pode deixar de lado – nunca – o aspecto mais importante de todo o universo: a Cruz de Cristo, sob o risco de não alcançarmos absolutamente nada. Nosso ensino será apenas de palavras vazias de energia transformadora. Poderá ser interessante, mas não produzirá transformação de vidas. Poderá até produzir abstinência, mas a sobriedade estará muito distante.

O Programa dos Doze Passos não conduz ninguém à sobriedade. Ele conduz o que sofre à presença de Deus e é aí, diante de Deus que a recuperação acontece.

Ensine à sombra da Cruz e o poder de Deus será manifestado na vida do que crê, pois "... agradou a Deus salvar aqueles que crêem por meio da loucura da pregação... para os que foram chamados, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus". (1.a Co 1:21-24).

Deus, pela insanidade do Evangelho, penetra em nossa insanidade e nos traz de lá para uma vida de abstinência, de sobriedade e de gratidão a Ele demonstrada no serviço a outros.

Quando experimentamos o livramento de nossa destituição, nós nos tornamos generosos e compassivos com o que ainda sofre. O Evangelho de Cristo desperta em nós um intenso anseio e, ao mesmo tempo, um esmagador ressentimento, porque a revelação do que realmente somos tem um gosto muito amargo. Ansiamos estar na presença de Deus, pois reconhecemos que nosso lugar é ali, e não no distante e mal cheiroso chiqueiro onde fomos parar. Mas ao mesmo tempo tememos a presença de Deus, pois entendemos que apenas sua presença é confronto extraordinário para cada um de nós. Queremos fazer qualquer coisa, consagrar-nos a qualquer obra, de alguma forma expiar nossa culpa, menos sofrer a humilhação de nos curvarmos diante de Deus no mais absoluto arrependimento, confessando Jesus Cristo como nosso Salvador e Senhor.

Não podemos ganhar nada de, nem vencer a Deus. Ou recebemos sua Graça sem precisar fazer nada, ou nada podemos receber. O maior grito já dado por alguém foi o de Jesus na Cruz: "está consumado". Se tentarmos fazer alguma coisa, estaremos dizendo que o sacrifício de Cristo não foi suficiente.

O Programa dos Doze Passos nos é uma grande bênção, pois nos conduz, desde o início, à compreensão de que somos impotentes. Até que cheguemos a essa convicção, nosso Senhor não pode nos ajudar. Somente entraremos em sobriedade quando aceitarmos que somos incompetentes para cuidar de nossas vidas. Enquanto nosso coração estiver cheio de orgulho e independência, Deus não pode fazer nada para nós.

Deus Todo Poderoso não pode fazer uma coisa e não tem outra coisa. Ele não pode mentir e não tem nossa vontade. Não poder mentir está em sua própria natureza. Não ter nossa vontade foi sua decisão em nos criar com liberdade de escolha.

Nossas escolhas nos levaram para longe da presença de Deus, o que é considerado a morte espiritual. Deus não pode mexer em nossa vontade e se limita diante de nós. Mas nós, criados à sua imagem e semelhança, temos em nós o anseio pela eternidade: "... Ele... pôs no coração do homem o anseio pela eternidade..." (Eclesiastes 3:11) Queima em nosso coração o desejo pelo paraíso. Mas não sabemos o caminho para lá. Então, o Espírito de Deus nos mostra, com uma gentileza sem fim, o Caminho, Jesus Cristo. Ele põe o além dentro de nós, ele nos ergue para o mais alto, faz-nos nascer Dele e nos conduz a águas tranqüilas (João 3:5)