Afora pequenos e invejosos comentários à boca pequena pelos corredores, "acho que ele vai se mudar para o banheiro", ou "nunca vi o meu pai tão limpo", nos primeiros dias tudo correu muitíssimo bem. Nos dois primeiros dias, para ser exato.
Foi no terceiro dia de minha lua de mel com o banheiro que as coisas se complicaram. A Cecília veio até o escritório nos fundos de casa e me disse, olhos nos olhos, que havia um problema. Era sobre a ducha. A Cecília, como você já deve ter desconfiado, é minha querida esposa, já há vários longos e prazerosos anos. Disse que não estava gostando nada daquele jatão em diagonal, ficava com aflição, queria porque queria a ducha reta para baixo, a água caindo civilizada, lá de cima, falou "por favor, Zé Roberto", quando ela fala assim, em itálico, você pode tirar o cavalo da chuva que o assunto vai longe.
Fiquei estupefato, mas disfarcei. Pigarreei, respirei fundo, minha mulher é osso duro de roer, no grito eu não ia conseguir nada. Fiz então a ela, com a voz mais carinhosa que pude conseguir na bronca que eu já estava, uma longa e, na minha modesta opinião, muitíssimo bem fundamentada exposição das razões que me levavam a aquela regulagem da ducha. Falei que o verdadeiro banho era aquele, em diagonal, era só uma questão de aprender, se adaptar, ter espírito esportivo, de viver aventuras, citei diversos filmes americanos e respectivos atores, com banhos assim. Aquele banhão de cima, caindo na cabeça, só em filme nacional.
O tempo todo da minha lenga lenga, ela ficou me olhando fixamente com aqueles grandes olhos claros e eu pude ver, nitidamente, todas as minhas palavras entrando por um ouvido dela e saindo, rapidinho, pelo outro. Quando terminei, deu um suspiro e saiu em silêncio, um minúsculo fogo de ressentimento começando a crepitar em seu peito. No meu também. À noite, disse um boa-noite abafado e não deitou-se no meu ombro. Nem nos lembramos da enfática advertência do velho manual: "que não se ponha o sol sobre a sua ira"
No outro dia, ainda chateado, a gente perdeu o costume de curtir ressentimentos e esse já estava bem grande, afinal passei a madrugada inteira alimentando o bicho, um fogaréu no peito, fui, claro, tomar um bom banho. Meu amigo, algum tempo depois, no escritório, eu estava não só chateado, como furioso.. Você não há de ver que a ducha estava tão reta para baixo que parecia até meio torta para dentro. Como o cano é muito curto, tive que me encostar todo na parede gelada, a água caindo na minha cabeça. Cara, o nosso box não é pequeno, tem dois metros de comprimento, cabe até uma mesinha com quatro cadeiras, e eu ali, encostado feito uma lagartixa. Saí de lá pensando seriamente em jogar minha esposa no lago que tem perto de casa. Antes disso, com um tapa voltei a ducha à sua posição normal, quem sabe ela acabava gostando.
À noite, as relações do casal tinham esfriado muito, para dizer o mínimo. Segundo minha filha comentou posteriormente, bem posteriormente, naquela noite eu estava com um bico de fazer inveja a um tucano. Estávamos num silêncio gelado, nós quatro, eu, ela e os dois orgulhos. Na hora de dormir, as coisas ficaram bem piores. Ela apenas me comunicou, em voz abafada e cortante: "Quando abri o chuveiro, agora há pouco, o seu lindo jatão de água passou por cima de minha cabeça e foi cair do outro lado do box. Isso não se faz nem com a Tatá. A partir de amanhã, vou usar o banheiro da Mariana". Excesso de regulagem, pensei, bem quietão no meu canto. Demorei para dormir. Bateu-me ali o primeiro e forte sinal de alarme, aquilo soara quase como uma separação. Além disso, como eu ia viver sem ninguém para chatear?
Aquela foi uma longa noite. Para nós todos, eu, a Cecília, o meu ressentimento, o ressentimento dela, a minha auto piedade, a auto piedade dela, estes quatro bem alimentados e robustos. Nem sei como a cama aguentou.
No dia seguinte, a minha ressaca continuou. A vida tinha perdido a graça. Lembrei-me do que um pastor uma ocasião me disse:"Zé, você não pode agir sobre os noventa e cinco por cento que acha que ela errou; só tem ação sobre os cinco por cento que você acha que está errando; repare-os. Tente não se importar com o que o outro está fazendo para você. Isso é um problema do outro. Preocupe-se apenas com o que você está fazendo para o outro". Algo assim como amar primeiro, era o que ele estava querendo me dizer. Meio encurralado, percebi que só me restava uma saída. O velho manual, a bíblia.
Fui repreendido praticamente por tudo o que li na bíblia. Vou citar só uma passagem, para encurtar a história: "Maridos, amais vossas mulheres, assim com Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ele, ..., para a apresentar a si mesma igreja gloriosa, sem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e sem defeito" (Efésios 5:25-27). Se é que entendi bem, eu precisava amar minha mulher de tal forma que ela, sentindo-se segura, sem medos, amada, sentindo-se a única, possa ter condições de se apresentar a Deus sem máculas, sem rugas, santa e sem defeitos.
Aquilo tudo mexeu muito comigo. Apesar de ainda ressentido, fiz um esforço, fui até à ducha, passei lá um bom tempo, com boa vontade tentando achar um ponto da regulagem que me satisfizesse, afinal eu ainda não queria virar uma lagartixa, e que não incomodasse tanto a Cecília. Penso ter achado um ponto, ainda em diagonal, como eu gostava, mas não muito, ou seja estava bem mais perto do que ela queria.
A partir daí, entreguei o assunto a quem de direito, como me recomendara o manual. Passei o resto do dia com muitos afazeres, mas me sentindo bem mais leve, a auto piedade e o ressentimento iam se evaporando. Não posso negar que estava bem esperançoso que ela voltasse atrás, embora eu soubesse que isso não poderia ser uma condição. O que eu fosse fazer ou falar, não só neste caso, em todas as situações, teria que partir direto do meu coração, sem interferências, independente de como o outro estivesse reagindo. Essa é a complicação, só sei reagir e, para mudar, é preciso muito domínio próprio e a força do Espírito Santo no dia-a-dia. Não tem outro jeito. Foi Deus que me disse, a mim só cabe amar, amar primeiro. O prêmio para essa mudança era o que eu estava sentindo, o prazer de viver.
À noite, tive um reunião, cheguei tarde, por volta das onze. Fiz algumas breves paradas, tomei um leite, ajeitei a Tatá no travesseiro dela, um pano dobrado, é a única cachorra no mundo que usa travesseiro, só que ela não sabe deitar-se nele. Cobri a gaiola do Pedrão com um pano, estava frio, passei no quarto da Mari, estava lendo, ninguém tomando banho por ali, passei pelo Lucas, prá variar estava descoberto, até que cheguei no meu quarto. Fui escovar os dentes, no banheiro um resto de nuvem de vapor. "Será que ela deu banho na Tatá?", pensei desesperançado. Toquei na sua toalha, ali bem ao lado da minha, estava úmida! Apreensivo, olhei de soslaio para a ducha, dei um audível suspiro de alívio. Ela tinha feito um acerto, deu para ver, mas era uma coisa de somenos, quase imperceptível. Aquela diferençazinha a gente tirava de letra. "Cara", pensei, com uma ótima sensação no peito, "aquilo era ou não era uma proposta de paz?"
Depois, no quarto, eu estava pegando o pijama, ela perguntou se a reunião tinha sido boa (sua voz estava doce ou era impressão minha?).
Nunca mais falamos sobre a ducha. Acabamos esquecendo o assunto, nessa rotina de pequenas, mínimas regulagens de parte a parte. Dizendo melhor, o assunto deixou de nos incomodar. Esse é outro prêmio, também, para quem ama primeiro. Porque, na verdade, fiquei com a forte impressão que ela se valeu também do manual, e acho que leu no mesmo ponto que eu.
Último detalhe. Naquela noite, antes de dormir, ela deitou-se no meu ombro.
Sou um homem ou uma lagartixa?
Tivéramos vários problemas numa inesquecível reforma feita em nossa casa. O fato é que, após entrevistas e conversas criteriosas com cerca de sete ou oito empreiteiros e mestres de obras, escolhemos o pior deles. A casa ficou meio torta, as paredes do corredor novo não se encontraram com as paredes do corredor velho, o muro de arrimo caiu... Sobre uma coisa, porém, não estava pairando a menor dúvida. O chuveiro novo, a ducha, o banho. Tinha ficado do jeito que eu sonhara. Nunca mais aqueles chuveirões, fios, resistências e algumas gotas mornas caindo cheias de má vontade. Só a ducha na parede, pequenina e cumpridora, e o jato forte, fumacento. Caindo de lado, claro, um jato transversal. Igualzinho, igualzinho, a tantos filmes americanos que eu via desde criança. Assisti cada banho! E sempre aquele jatão fumegante, caindo espetacularmente. Agora eu tinha um só para mim. E para minha espôsa, claro.